20 janeiro 2006

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!"

José Régio

Pintura de Luis Royo

5 Sai da toca:

Blogger Politikus Sai da toca e diz:

Adorei. Não percebo porque lhe deram o nome de "Cântico Negro".

Blogger Politikus saiu da toca a 20 janeiro, 2006 21:24
Blogger António Sai da toca e diz:

Um dos melhores e mais conhecidos poemas de José Régio.
É, de facto, uma maravilha de força de lutar contra a corrente.

Obrigado pela visita.
Escrevi um bocadinho menos, mas porque não me convinha começar neste episódio o que vem a seguir.
Continua a ler que não te arrependerás!
(se não sou eu a fazer publicidade quem a fará por mim? eh eh)

Beijinhos

Blogger António saiu da toca a 20 janeiro, 2006 23:14
Blogger Mac Adame Sai da toca e diz:

É isso mesmo. José Régio tinha toda a razão. Eu também nunca vou por aí, como a carneirada.

Blogger Mac Adame saiu da toca a 21 janeiro, 2006 03:05
Blogger heidy Sai da toca e diz:

Adoro o poema e amo a imagem. já por diversas vezes a quis meter como imagem principal no meu estabelecimento. :)
É miga ovelhita, nunca vás para onde os outros te queiram levar. Só tu podes escolher o teu destino... a tua sorte e o teu fado.


E depois, já viste se fosses e alguém te tosquiasse? era uma chatice! lolololol
bjokas pa ovelhita mai tresmelhadita

Blogger heidy saiu da toca a 26 janeiro, 2006 12:20
Blogger Unknown Sai da toca e diz:

Um belo conjunto de imagem poema...
Convém não nos deixarmos levar pelo caminho que os outros querem :)

Blogger Unknown saiu da toca a 26 janeiro, 2006 22:53

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